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“Vespúcio, ereto e senhorial, diante de uma mulher nua e eroticamente convidativa”. Assim Anne McClintock descreve a gravura de Jan van der Straet, de 1638, intitulada Vespúcio descobre América.

Por que será que as representações da conquista europeia da América frequentemente associam o continente a um corpo feminino? De fato, há vários exemplos, desde os primeiros séculos da colonização, de narrativas textuais e visuais que carregam o conteúdo explícito de feminização dos territórios invadidos.

O corpo feminino opera aqui como uma metáfora visual para a inferiorização. Vamos ver outros casos para entender melhor.
Detalhe de mapa mundi de 1544. Em cena de confronto com espanhóis, indígenas da floresta aparecem como mulheres guerreiras, as Amazonas. Não é um elogio.
Um manifesto poético anônimo, escrito por um português em 1727, discorre sobre os malefícios da cobiça ao ouro no Brasil. Para personificar sua concepção moralista e depreciativa da mineração, as minas de ouro foram descritas na carta poética como uma mulher.

Para o autor, a liberalidade com que a terra colonizada oferecia aleatoriamente seus auríferos favores, concedendo e recusando riquezas a colonos desavisados, denunciava a vaidade e inconstância das minas de ouro, características que a moral europeia da época atribuía à ‘mulher’.

Vejamos um trecho do documento, onde ‘as minas’ se referem a si mesmas com inusitada sinceridade crítica, reconhecendo o contraste entre sua bela e sedutora aparência e seu interior insensível e ardiloso.
Sou um monstro medonho
Concebido em pavor, gerado em
sonho!
Sou um composto horrível
De fantástico corpo, alma
insensível!
Mas a verdade do caso obrigada
Só chego a ter ser, para não ser
nada
...
E eu por buscar aos homens, e por
achá-los
Quisera mais viver, por mais
lográ-los
E me parecia vivia deles tão
obrigada
Que me julgava Ganimedes
arrebatada

Quem garimpou a Carta que Veio das Minas nos arquivos de Lisboa foi a historiadora Carolina Capanema; confira em seu livro “A Natureza política das Minas”.
Alain Quatermain, um cavalheiro inglês caçador, lutador, negociante e minerador, relembra a expedição que realizou com o Capitão John Good e Sir Henry Curtis pelo interior do continente.

Juntos, buscavam o irmão mais jovem de Sir Henry, caçador de fortunas perdido na “selvageria” racial da África.

Um mapa guiava a máscula aventura. Esse é o ponto de partida do livro “As minas do Rei Salomão”, escrito por Henry Haggard e publicado pela primeira vez em 1885. Nas entrelinhas, mais uma narrativa colonial sobre controle de corpos e territórios além mar pelo homem branco.
Falemos mais do mapa apresentado no livro de Haggard. Sua elaboração custou talvez os últimos fôlegos do mercador português João Silvestre, cujo corpo Quatermain encontrou séculos depois.

Orientado pelo norte cardeal, pela seta que orienta o progresso do Ocidente, o mapa é marcado por alusões ao corpo feminino, o que se torna ainda mais evidente quando o desenho é invertido.

O local indicado como “poça de água ruim” marca o sul, a cabeça e o começo da jornada. Marca, igualmente, a negação da inteligência e criatividade das populações colonizadas. Em seguida, vemos os dois montes sinalizados como “Seios de Sheba”, local onde Silvestre teria morrido.

Dali saem os braços, formados pela montanha que se desenvolve para direita e esquerda no desenho. A “estrada de Salomão” marca o tronco - e marca também a presença e posse anterior de um patriarca branco (assim Hagaard considerava Salomão). O monte pubiano é indicado por três colinas que formam um triangulo, nomeadas Três Bruxas no livro, graficamente contraposto ao desenho dos quatro pontos cardeais, símbolo da razão ocidental. A cavidade descrita como “boca da caverna do tesouro”, indica a entrada vaginal.

O mapa de Hagaard destaca a terra colonial como corpo a ser conquistado e monetarizado.
Um corpo de mulher.
Essas histórias, e tantas outras, nos ajudam a entender os fios que ligam o colonialismo e a invenção da masculinidade - e da própria Europa - sempre em oposição ao outro. As alteridades então produzidas, por sua vez, tomam por referência o homem branco, sujeito europeu por excelência.

Virilidade, coragem e militarização são características necessárias para a invasão e o controle de territórios. A terra a ser conquistada é sedutora, mas ardilosa, não é confiável. Seu corpo deve ser mapeado, explorado e controlado. O código binário do gênero só permite lidar com masculino ou feminino, construindo suas referências a partir desses dois polos
Os discursos sobre o ‘outro’ são marcados pelo gênero, ainda que nem sempre de modo evidente. A saga branca em superar os obstáculos na busca de riquezas das terras conquistadas explicita o desejo europeu de conquistar e domar a selvageria das colônias, supostamente levando a civilidade europeia aos quatro cantos do mundo e salvando as sociedades não ocidentais de si mesmas. Nessas narrativas, as terras além-mar são como corpos femininos, disponíveis à captura, à domesticação e à exploração.

A ampla dispersão dessas narrativas se justificava: como nos conta Anne McClintock, no final do século XIX 85% da superfície da terra tinha por “donos e gerentes” homens brancos europeus.
No Brasil, na linha de reescrever o passado a partir do heroísmo branco e masculino, intelectuais paulistas engajados nas comemorações do centenário da independência em 1922, resgataram um personagem muito peculiar dos primeiros séculos da colonização e o alçaram de fora da lei a herói conquistador.

Assim, os bandeirantes, homens europeus e eurodescendentes, pioneiros desbravadores dos sertões, passaram a ser considerados os colonizadores por excelência da Terra brasilis.
Os bandeirantes usaram de extrema violência e praticaram atos bárbaros contra crianças, mulheres e homens indígenas. Eram ladrões, estupradores, assassinos e caçadores de pessoas para escravizar. Ainda assim, os bandeirantes passaram a ser representados como viris e corajosos heróis que enfrentavam com brio os mais diversos perigos e toda sorte de ataques a fim de garantir a posse europeia dos novos territórios. Além das narrativas literárias, fílmicas e televisivas, os bandeirantes aparecem em museus, livros didáticos, pinturas, esculturas e monumentos que os marcam como honrosos fundadores de diversas cidades.
Como disse Denilson Baniwa, “os homens da História construíram complexos códigos que transformaram violências em alegrias”.
Atualmente, artistas, intelectuais e movimentos sociais têm protestado mundo afora contra monumentos que honram colonizadores, denunciando seu racismo e selvageria.
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Os bandeirantes também eram conhecidos por sertanistas, aqueles que percorriam os sertões. Vejam que sertão é corruptela de desertão, extensas paragens desabitadas.
A palavra “sartãao” aparece na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, como referência às terras recém encontradas, “muy largas” e longe “deste lugar”, do lugar da civilização cristã.
Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, o “sartãao”, ou “certam”, continua com essa conotação de lugar afastado e inóspito, dos “índios bravios”, além do alcance da coroa portuguesa.
Para a antropóloga Custódia Selma Sena, o termo Sertão denomina uma “realidade imaginada”. (IMAGEM Mapa geral da Capitania de Goiás, 1753)
Desde a colonização, o argumento de que o sertão seria uma terra de ninguém, despovoada e atrasada, é utilizado para justificar a invasão e exploração dos territórios. Hoje, homens de Estado e de Finanças trabalham para continuar a expansão do capital sobre terras que consideram improdutivas. Por terras produtivas entendem os espaços dedicados à monocultura e extrativismo predatório – modelo aplicado no país desde o século XVI – hoje batizados de agronegócio e neoextrativismo. Espaços em diferentes biomas transformam-se em um sertão imaginado, onde matas, nascentes, pequenas propriedades e territórios tradicionais são compreendidos como espaços vazios, rincões do atraso, que devem ceder lugar ao progresso.
Nas grandes cidades esse modelo predatório se molda e replica; a revitalização de bairros com ocupação antiga e áreas ‘históricas’ empurra cada vez mais famílias pobres e negras para as periferias. O sertão não virou mar, mas a periferia virou sertão. Esse processo de apropriação de recursos, cada vez mais acelerado pelos “avanços técnicos”, não deixa de surtir os mesmos efeitos coloniais: o deslocamento compulsório e a destruição de pessoas não brancas, ditas improdutivas.
No processo de colonização, terra e corpo feminino foram associados, simbólica e materialmente, como espaços a serem conquistados e invadidos. A partir de um imaginário repleto de referências à dominação de corpos e territórios, a norma ocidental da masculinidade foi desde então construída e posta em ação.