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“Algumas Índias há que também entre elas determinam de ser castas, as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher .” (Pero de Magalhaes Gandavo, 1576)
“Ainda melhor que suas mulheres, diziam os Kadiwéu, eram os antigos kudina, no domínio dos padrões de desenho. Referem-se a homens que assumiam a condição de mulheres, vestindo-se, sentando-se, comendo e falando como as damas; casando-se com homens da tribo e até concorrendo mensalmente à reclusão das menstruadas, para assim participar das fofocas da aldeia. “ (Darcy Ribeiro, 1986)
No Peru, os Inca tinham xamãs especiais chamados Quariwarmi. Tanto homens (quari) quanto mulheres (warmi), os Quariwarmi eram sacerdotes andróginos que conduziam os rituais a Chuqui Chinchay, divindade onça pintada arco-iris, protetora das pessoas de dois gêneros. Os rituais a Chuqui Chinchay às vezes exigiam práticas eróticas entre pessoas de mesmo sexo. Para Michael Horswell, estudioso de sexualidades pré-colonização, a figura travestida do Quariwarmi exibia a mediação entre o sagrado e o cotidiano, masculino e feminina, presente e passado, vivos e mortos. Os Quariwarmi agiam pelo equilíbrio de energias na dualidade complementar característica dos povos originários de Abya Yala.
Quando os europeus invadiram os territórios dos povos originários dos atuais Canadá e EUA, também se depararam com sociedades que desconheciam fronteiras rígidas entre masculino e feminina. Homens adotavam papéis sociais femininos e vice-versa. Tais pessoas não eram percebidas como “homem” nem “mulher”, recebiam um outro nome. Eram respeitadas e participavam da vida social com status de importância.

We’wha (1849-1896), uma lhamana do povo Zuni (Estados Unidos), lendária pela maestria na tecelagem, pelo peso de seus conselhos na comunidade e seu importante papel educativo e diplomático com não-indígenas.
Entre os Navajo (EUA), nadleeh quer dizer “aquele que se transforma”. Essas pessoas possuíam papéis importantes dentro de suas comunidades. Não se tratava apenas de assumir tarefas cotidianas do ‘sexo oposto’, mas de incorporar responsabilidades de mediação, liderança e cuidado.

Hosteen Klah (1867-1937), um nadleeh Navajo (Novo México, EUA), mestre na tecelagem (tecnologia feminina), no canto cerimonial (masculino), na pintura e medicina.
A fluidez entre os universos masculino e feminino não era vista como ato culposo ou “anti-natural” pelos povos ameríndios anteriores à colonização europeia. Pelo contrário, essas pessoas tinham uma perspectiva ampla de suas sociedades, vivendo no limiar da complementaridade entre unidades duais. À esquerda na foto, Osh-Tisch, uma badé (pessoa com genitália masculina que participa de funções sociais e religiosas geralmente cumpridas por mulheres) do final do século XIX, guerreira feroz e habilidosa costureira. Ao lado dela, The Other Magpie, sua esposa e valorosa guerreira ‘cis’, ambas do povo Apsáalooke (EUA).
Atualmente, populações indígenas do norte de Abya Yala evocam a fluidez masculino-feminina na expressão “Two-Spirits” (Dois Espíritos). Segundo a pesquisadora indígena queer Marie Laing, a palavra foi criada na década de 1980 por coletivos nativos que buscavam um conceito guarda-chuva para pensar a diversidade sexual e de gênero entre povos indígenas e os impactos da colonização sobre essas expressões. A autora chama atenção para cuidados que devemos ter, no entanto. “Two-Spirits” não é entendido da mesma forma por todos os povos, tampouco é um equivalente à sigla LGBTQIAP+ (construída a partir de valores ocidentais de sexualidade e gênero).
Na costa do Equador Enchaquirados é uma autodenominação coletiva de pessoas trans que assumem sua identidade como vocação de resistência e ancestralidade. De acordo com o arqueólogo e antropólogo Hugo Benavides, já no século XVI os cronistas europeus relataram a presença de Enchaquirados, um grupo seleto de jovens que se vestiam e se adornavam com elementos femininos e se deitavam com homens da elite. Seu mais destacado adorno eram os braceletes de conchas denominados chaquiras, itens de alto valor social e prestígio. Mesmo registrando os Enchaquirados com desprezo, como adoradores do diabo e sodomitas, os cronistas coloniais também relataram que sua presença era normalizada e aceita entre as comunidades indígenas.
Para o povo Igbo, da Nigéria, gênero e sexo não coincidem necessariamente. Ali, o gênero é fluido e flexível, possibilitando que corpos femininos atuem socialmente como homens. Assim, de acordo com a antropóloga nigeriana Ifi Amadiune, filhas podiam ser nomeadas por seu pai para atuar econômica e politicamente como homens. Como 'filhas masculinas', elas se tornavam filhos em termos de posição na linhagem e controle da propriedade. Instituições e ideologias Igbo anteriores ao colonialismo também permitem que viúvas ocupem a posição econômica e social de homens, casando-se com outras mulheres e assumindo esposas. Ou seja, para o povo Igbo, mulheres biológicas podem ser homens sociais pelo casamento ou nomeação dos pais.
De fato, além dos Igbo, muitos povos africanos apresentam a instituição do casamento entre mulheres, como os Zulu, os Nuer, os Abagusii, os Lovedu e os Nandi. O historiador nigeriano Kenneth Chukwuemeka Nwoko indica que a instituição era aberta à mulheres influentes, ricas e mulheres que haviam passado pela menopausa, em todos os casos desde que pudessem pagar o dote da noiva. Com o casamento, as ‘maridas’ ganhavam ainda mais influência na sociedade, combinando funções e obrigações seculares e espirituais, participando de rituais secretos e às vezes se associando com os anciões em rituais comunitários.