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Vejamos o que as evidências arqueológicas e históricas têm a nos dizer sobre corpos e sexualidade em outros tempos e lugares – antes do colonialismo e eurocentrismo se expandirem mundo afora, impondo seus valores e crenças.
Por todo o mundo são encontradas imagens arqueológicas com forma humana, mas que não se encaixam adequadamente no par oposto homem/mulher. Algumas mostram corpos simultaneamente masculinos e femininos, outras não apresentam características nem masculinas nem femininas. Em conjunto, as imagens sugerem que gênero, tal como conhecemos, não era uma marcação central para aquelas sociedades.

São imagens que também evocam a possibilidade de fluidez, de mutabilidade de corpos masculinos para femininos – e vice-versa. Mais importante, a frequente presença das figuras em contextos religiosos indica a relevância desses corpos no sagrado daqueles povos.
A estátua na imagem mostra uma pessoa jovem com corpo masculino e traços faciais femininos, suaves e delicados. Em seus braços uma criança com corpo humano e rosto de onça. Nos ombros e pernas, tatuagens de seres sobrenaturais com feições animais. A escultura é Olmeca, nome dado aos povos indígenas que viveram na atual região do México entre cerca de 3.500 e 2.600 anos atrás. Considerada a primeira grande civilização mesoamericana, os Olmecas parecem ter estabelecido as bases de várias inovações desenvolvidas por povos posteriores, como a escrita e o calendário. Os Olmecas também são famosos por introduzir o ‘jogo de bola’ ameríndio e por sua arte impressionante.

Quando esta peça foi encontrada por moradores na década de 1960, foi chamada ‘Virgen de Las Limas’ porque, obviamente, retrataria uma santa mãe e sua criança. Os arqueólogos logo alteraram o nome para “Señor de Las Limas” porque, obviamente, a estátua representaria um homem importante. O olhar educado pelo colonialismo tem dificuldade em enxergar fora das caixas do binarismo de gênero.
Na imagem, um busto esculpido em calcário com cerca de 1300 anos de idade, de Hun Hunahpu, uma divindade Maia. A escultura foi encontrada em uma pirâmide Maia em Copan (Honduras) e hoje é mantida pelo Museu Britânico.
Os povos Maia vivem no México e América Central há milênios. Além de sua arquitetura e escultura impressionantes, os Maia produziram um calendário até mais preciso que o que usamos hoje e um sistema de escrita muito complexo. Textos sagrados, imagens e narrativas Maia falam de Hun Hunahpu, a divindade do milho. Ela é associada à mudança das estações, à vida, ao renascimento, ao ciclo de vida das plantas e das pessoas. Na escultura da foto, Hun Hunahpu aparece jovem e andrógino, com corpo masculino e traços faciais femininos, suaves e delicados. Suas imagens mostram um rosto considerado um padrão de beleza para o povo Maia há mais de mil anos.
Esta grande escultura em rocha vulcânica mostra Tlaltecuhtli, uma deusa Mexica (Asteca). Os Mexica já tinham se deslocado e se estabelecido na região do México central há uns 200 anos quando os europeus invadiram. Como os Maia e outros povos mesoamericanos, também tinham ciência e arte elaboradas, calendários solares e lunares muito precisos e escrita.
No panteão Mexica, Tlaltecuhtli é uma divindade da terra. “Grande Mãe da Terra” ou “Grande Senhor da Terra”, a divindade aparece algumas vezes com características e vestimentas femininas, outras vezes masculinas. Com cerca de 500 anos de idade, a escultura da deusa que aparece na foto mantém suas cores originais. Mesmo com a quebra do painel na região do tronco, é possível vislumbrar os seios da divindade.
Os espanhóis empreenderam um ataque sistemático à escrita e ao conhecimento indígenas, destruindo todos os livros que encontravam, os chamados códices – sim, os Mexica e outros povos mesoamericanos sabiam fazer papel também! Mas alguns códices escaparam. E eles contém muitas informações sobre os povos originários e suas divindades. Aqui, uma versão de Taltecuhtli usando as vestes e máscara masculinas que os Mexica usavam no século XVI. Mesmo assim, a figura aparece, como sempre, na posição de cócoras – que é também uma posição de parto. Na cosmologia Mexica, o corpo da divindade deu origem à paisagem como conhecemos – plantas, montanhas, vales, rios.
Outro exemplo vem da costa do Equador, onde estatuetas cerâmicas que evocam a fluidez do gênero foram produzidas por cerca de mil anos, desde aproximadamente 2.500 até 1.500 anos atrás. Peças como estas têm sido interpretadas como masculina ou feminina a partir de seus elementos anatômicos (seios, quadris e cintura destacados, pênis) e itens de vestuário recorrentemente associados a essas características físicas, como tangas nas figuras masculinas e saias nas estatuetas femininas.
No entanto, de acordo com a arqueóloga Maria Fernanda Ugalde e o arqueólogo Hugo Benavides, algumas figuras apresentam características mistas, como pênis e silhueta feminina (cintura fina e quadris largos) ou seios e/ou cintura acentuada, mas vestindo tangas, vestuário masculino. E há várias outras combinações além dessas...
Entre as esculturas da costa equatoriana, há uma variedade de estatuetas que mostram personagens em pares. Além do par homem/mulher, também se notam casais formados por homem/homem e mulher/mulher, por vezes incluindo a presença de bebês, como nesta foto.
Não se trata de dizer que para outros povos, ou que em outros tempos, não haveria homens e mulheres ou pares de homem-mulher tendo crianças. Trata-se de dizer que esses não são os únicos arranjos possíveis e que os entendimentos sobre ser homem, ser mulher e inclusive sobre maternidade, variam bastante mundo afora.
A partir de aproximadamente mil anos atrás, os povos indígenas da Amazônia começaram a produzir belíssimas estatuetas cerâmicas com base semilunar. Com uma forma geral fálica, as pernas dessas peças são indicadas pelos testículos, o tronco marcado pelo corpo do pênis e a cabeça pela glande. Muitas estatuetas apresentam seios e triângulos ou fissuras na região do púbis, marcando a vulva. Há, inclusive, figuras de forma fálica com barriga grávida! Masculino e feminino no mesmo corpo.