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Nos conteúdos do AMAA sobre branquitude e masculinidade, você encontra discussões sobre como a ciência ocidental, sobretudo a partir do século XIX, esquadrinhou, definiu e classificou os corpos, biologizando-os minuciosamente. Obviamente envolvidos pelo contexto e pensamento social ao qual pertenciam, os cientistas de então forneciam explicações físicas, biológicas, psíquicas e antropológicas que justificavam o colonialismo, encontrando ‘na natureza’ supostas evidências comprobatórias da superioridade branca em todas as suas expressões. O racismo, a misoginia, a cisheteronormatividade e o capacitismo receberam então os argumentos biomédicos da raça, do sexo, da monossexualidade hétero e da deficiência. Ideias, práticas e crenças compartilhadas pelos círculos letrados europeus, incluindo noções sobre o que significava ser ‘homem’ e ser ‘mulher’, subsidiavam as pesquisas. A heterossexualidade e a família nuclear eram elementos fundamentais desses entendimentos – entendimentos que, não custa reforçar, foram produzidos por elites sociais e econômicas de países da Europa Central, como Inglaterra e França, a partir principalmente do século XVIII.
Da junção entre sexo e gênero, ou entre anatomia e comportamento social desejado, surgiram, no final do século XIX, as noções de heterossexualidade e homossexualidade para designar (e controlar) os corpos e os afetos.
Um exemplo do papel da ciência no controle dos corpos é a discussão biomédica sobre histeria. De acordo com a historiadora Laura Briggs, no século XIX a histeria era um diagnóstico genérico de “doença dos nervos”. A psiquiatria de então argumentava que a fragilidade da constituição feminina sofria muito com os excessos da civilização e, portanto, deveria abandonar ideias como estudo e trabalho, que irritavam os nervos a ponto de comprometer a capacidade reprodutiva das mulheres. Laura Briggs defende que a histeria era mais uma ideologia que uma doença real, usada para manter mulheres brancas e burguesas no ambiente doméstico, cumprindo seu papel de reprodução da “raça superior”.

A pintura mostra Jean-Martin Charcot, importante psiquiatra e neurologista francês, ensinando sobre histeria com a ‘colaboração’ de uma paciente acometida.
Por outro lado, as mulheres não-brancas e não-burguesas (africanas, afrodescendentes, indígenas, trabalhadoras, etc.) não sofreriam de histeria, sendo mais fortalecidas pelo trabalho manual duro, típico de culturas ‘menos evoluídas’. Com isso, a medicina tomava posse do corpo feminino, direcionando-o seja à reprodução e privação de prazer sexual, seja à hipersexualização e trabalho. Essas mulheres, sobretudo as não-brancas, também eram, vezes seguidas, usadas como cobaias de experimentos médicos sem autorização e sem conhecimento do que estavam sendo submetidas.
Ao longo dos séculos XIX e XX, o interesse científico nos corpos outros (mulheres, pessoas não brancas e pessoas ‘doentes’) cresceu. inúmeros estudos não autorizados reforçaram estruturas coloniais e racistas. Nos EUA, homens negros foram cobaias involuntárias no Estudo da Sífilis não Tratada de Tuskegee, onde sequer foram informados sobre a doença - ou tratados! Mulheres negras foram utilizadas no desenvolvimento de procedimentos obstétricos e ginecológicos sem aplicação de anestesia. Em 1951, após a morte de Henrietta Lacks, suas células foram coletadas e utilizadas em pesquisas sem consentimento de sua família, gerando a linhagem de células HeLa, um pilar da indústria de biotecnologia. Outro meio, além da escravização, de transformar corpos classificados como de ‘segunda categoria’ em recursos.
O corpo masculino também é passível de controle médico. Já no final do século XVIII, o suíço Samuel Tissot defendia que muitos dos males de saúde entre os homens eram resultados de desperdício de energia pela masturbação, entre outras práticas. Segundo o médico estadosunidense Vern Bullough, os cintos anti-masturbação, como o da imagem, foram patenteados até a década de 1930.