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A iconografia dos povos originários de Abya Yala é rica em exemplos do que podemos tratar por ‘humanimalidade’: a presença de traços humanos e animais num mesmo corpo, indicando tanto a passagem de uma forma à outra quanto a absoluta simetria entre esses seres. Isso mesmo, não encontramos aqui a noção ocidental de superioridade humana frente à natureza ou animalidade. E vejam só que curioso, não por acaso, muitas vezes essa mudança de uma forma a outra inclui gênero!
Inúmeras peças arqueológicas ameríndias mostram uma combinação de figuras humanas e de animais, indicando relações complexas e permeáveis entre diferentes espécies.

Na imagem, urna funerária Aristé encontrada no atual estado do Amapá, com cerca de mil anos de idade. A vasilha cerâmica mostra um rosto humano e apliques de animais no corpo: uma cabeça de felino e um rabo de lagarto.
Na América do Sul, especialmente na bacia do rio Amazonas, a Cobra Grande é um ser que combina dois em um: a cobra que vive na terra e na água e o humano, homem e mulher. A antropóloga Els Lagrou relata uma narrativa Huni Kuin, povo indígena que atualmente vive no estado brasileiro do Acre e no Peru, sobre a origem da Cobra Grande: conta a história que a anaconda surgiu durante o dilúvio, quando o casal Yube e Sidika estava deitado numa rede coberta com desenho. A rede se transformou na pele da anaconda e o casal se transformou no ser andrógino.

A imagem ao lado mostra um corpo em transformação, uma cabeça humana com cocar e um corpo serpentiforme, materializando uma narrativa cosmológica pan-amazônica.
Os Moche viveram na costa norte do atual Peru aproximadamente entre 1.900 e 1.300 anos atrás. Dentre suas produções materiais são famosas a arquitetura monumental, seus sistemas de irrigação, sua joalheria e sua cerâmica, profusamente colorida e muito realista.

Vaso Moche em cerâmica, mostrando um felino ‘sentado’ sobre uma cabeça humana.
A iconografia dos povos Moche mostra inúmeros exemplos de fluidez e transformação entre corpos de diferentes naturezas: humanos, animais, vegetais e até esqueletos.

Vaso Moche em cerâmica, onde se vê um felino com uma cabeça humana ‘saindo’ de sua boca.
Dé Lionel Soares, arqueólogue especializade em xamanismo e cosmovisão Moche, nota que as noções de transição, movimento e transformação que essas cerâmicas evocam são centrais às práticas religiosas dos povos originários e estruturantes da organização sociocosmológica dos povos indígenas dos Andes.

Vaso cerâmico com alça em estribo onde se vê uma ave com cabeça e crânio humanos na lateral do corpo.
As peças que mostram figuras híbridas compostas por tubérculos, animais, humanos e esqueletos parecem remeter ao Hurin que, para povos andinos, corresponde ao inframundo, noturno e úmido, habitado por seres noturnos e pelos mortos. Também responsável pela geração de vida, o Hurin está associado à reprodução, ao feminino e à ancestralidade.

Vaso cerâmico com alça em estribo mostrando uma batata com cabeça de felino, com serpente e humanos.‘brotando’ da batata.
Vaso cerâmico com alça em estribo mostrando uma batata doce com rosto humano e aves, lobo marinho e iguana ‘brotando’ em seu corpo.